[Livros são instrumentos muito perigosos, por essa razão, todos eles deveriam ser vermelhos]

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

ESQUEÇA-SE


A memória é um poço sem fundo,
quando conveniente, raso,
quando não, profundo.

TU

Por que me aceitas como sou
se nem eu mesmo suporto 
meus vícios e manias?
Não digas que amas a mim
mais que eu mesmo.
Posso somente aceitar a
ideia de que tu enxergas
menos que meus olhos


HOMEM MACACO

Evoluímos de uma espécie irracional, 

nos transformamos e transformamos tudo ao nosso redor. 
Aprendemos a fazer de árvores, papéis; 
do ferro, espadas; de panos, bandeiras. 
Aprendemos a transformar o bronze em arte, 
pedras em casas, borracha em pneus, pólvora em bala.
Transformamos sons em música, pigmentos em pinturas, 

argila em bustos, átomos em energia. 
Aprendemos a transformar mitos em Deuses, 
letras em poesia, imagem em cinema, dinheiro em guerra.
Transformamos idéias em teses, filosofia, em livros; 

mas também transformamos a ordem no caos, 
paixões em traumas, sorrisos em lágrimas, 
alegrias em frustrações, e o amor em absolutamente nada.
Preciso urgentemente voltar a ser macaco.


AVOAR

Vou pensar em ti uma vez mais,
por mais um dia, uma vez mais
Vou pensar em você porque não
custa nada, porque não
tenho razão, porque não tenho
nada a perder, uma vez mais
Nem ontem nem sempre,
mas agora, por mais um dia,
por mais um mês, por mais um ano,
uma vez mais
Vou pensar em ti como num sonho,
num destino, num caminho,
numa realidade abstrata.
Uma vez mais, por dez segundos,
uma vez mais
Vou pensar porque é difícil esquecer,
porque não tenho o dom de apagar,
porque não sei colocar pedras sobre
mim mesmo.
Vou pensar em ti porque não
consigo rejeitar a beleza,
porque odeio o silêncio,
a inércia, porque não consigo não
pensar em nada
Por mais um dia, por um segundo,
por mais uma página, por mais um mês,
uma vez mais...

MIMETISMO

Aos poucos me transformo. 
Pareço cada vez mais com algo que desconheço. 
Confundo-me todos os dias quando acordo. 
A cada manhã vejo meus membros diferentes do que eram no dia anterior. 
A cor dos meus olhos não é mais a mesma.

Minha voz é outra, parece d'outro. 

Assim como minha altura, largura, profundidade e peso. 
Minha pele muda sem a necessidade de sol. 
Um dia sou assim, no outro sou assado.

Não reconheço mais meus pelos, nem a aspereza das minhas mãos. 

Adquiro rapidamente novas formas, todas muito agradáveis. 
Ora rastejo, ora corro, ora nado, ora vôo. 
Até mesmo minha mente me surpreende a cada quarto de hora.

Muitas vezes pareço planta, outras, bicho. 

Sou manso, selvagem, agreste. 
Sou seda e espinho, tenho asas e garras. 
Sou parecido com o sol, sou parecido com a lua. 
Sou folha e raiz, sou tronco e machado.

Agora, exalo a sândalo. Ontem exalava a nada. 

Sou jovem, sou menino, sou homem, sou velho, 
mas acima de tudo, e antes de mais nada, sou vida.

NATURA-ME

O vento bateu à minha porta.
Não abri.
Ele adentrou pela fechadura e 
bagunçou minhas tralhas:
gavetas, roupas, papéis, meias...
Ideias.
Foi embora depois dos vestígios.
Misterioso, não avisou quando volta.
Hoje percebi que não adianta fechar
portas, pois mesmo assim,
ele há de encontrar uma fresta
para realizar em meu interior
suas maiores traquinagens.

IMPONDERÁVEL

Não vivo no tempo passado,
onde o mistério do inusitado
um dia abririu o meu peito 
e introduziu nesta caixa
uma bomba que teima 
em me desobedecer.

QUINHÕES

Deixo um pouco de mim em tudo que vivo.
Nas casas onde morei, deixo um pouco de mim.
Deixo um pouco de mim nos berços onde fui embalado,
nos lençóis que aqueceram meu corpo, nos travesseiros,
nas camas onde deitei...
Deixo um pouco de mim nos chãos que pisei,
nas paredes onde encostei minha coluna,
nos sapatos que calcei, nas roupas que vesti...
Deixo um pouco de mim nas cadeiras onde sentei,
nos pratos onde comi e nos copos que mataram minha sede.
Deixo um pouco de mim nos portões e portas que abri,
nas árvores que trepei, nos móveis onde guardei meus pertences.
Deixo um pouco de mim nos botões que abotoei,
nos pincéis que pus entre os dedos, assim como nos anéis,
luvas, relógios que me indicaram o tempo.
Deixo um pouco de mim em cada pessoa que cruzou meu caminho:
as que me amaram, ou me odiaram.
Deixo um pouco de mim em cada calçada que passei,
cada pedra que atirei, cada brinquedo,
cada fotografia que pendurei.
Deixo um pouco de mim em cada objeto em que pus meus olhos,
em cada livro que eu li; deixo um pouco de mim em cada
palavra que escrevi, ou digitei.
Deixo um pouco de mim em cada fração de segundo.
Deixo um pouco de mim nos sonhos que sonhei,
nos filmes que assisti, nas frases que pronunciei,
nas lágrimas que escorreram sobre meu torso,
nos sorrisos que iluminaram meus caminhos,
nos pelos que arranquei, nas comidas que comi,
no tédio, na tortura, no gozo, no frio, no calor que senti,
nas tesouras que cortaram meus cabelos.
Deixo um pouco de mim na rotina que me consome,
nas estrelas, na lua que se escondera por trás de
nuvens passageiras; nos arco-íris, no vento,
na chuva, nas folhas, no lixo que produzi.
Deixo um pouco de mim nos meus dias,
na memória e no esquecimento.
Deixo um pouco de mim nos meus gritos,
nas bandeiras que tremulei, nos afagos, nos martelos...
Deixo um pouco de mim em cada espelho que 
refletiu minha imagem e na própria imagem.
Deixo um pouco de mim no nada que passou
e que ainda está por vir, na beleza que seduz,
no fustigar, no transe e no meu mais inquietante medo.

GPS

Me busque, mas não me salve.
Estou numa esquina qualquer,
ora sentado, ora de pé.
Resmungo com o tempo,
arranho a calçada e 
dedico sopros ao vento.
Rasgo minhas vestes,
pisco meus olhos mais de mil vezes.
Me arraste até um canto,
me encante, me coma,
me cuspa, me transe.
Entro com o meu olhar
enquanto meus pés perseguem
outro caminho, outro passeio.
Rastreie-me enquanto há luz,
pois no escuro também sou gato pardo,
daqueles que desobedecem ordens,
sobem em árvores e afiam as unhas
nos lugares mais inconvenientes.

CORRENTE

Eu como chocolate, 
eu chupo melancia,
eu bebo água, eu como água,
eu bebo melodia.
Eu sopro fogo, mastigo agonia,
trafego em transito farto,
engulo alforria.
Todos os dias! Todos os dias!
Pare, pense e passe.

Passe, pare e pense.
Me arrume um pente,
me arrume um pente.
Tente, tente, tente.
Não sou vidente,
careta, carente.
Contente! Contente!
Contentamento de barco é mar.

Contentamento de tiro é alvo.
Contentamento de amor é gente.
Preciso de um alvo, 
preciso de um pente.
Agora! Agora! Urgentemente!
Não sou vidente,

careta, contente.
A essa altura, não paro,
não passo e nem penso.
Me acorde, me acorrente!
Minha mente mente.

Ela alça voo e me diz
que só foi ali.

FUTUROS

Como são admiráveis as lembranças do futuro!
Aquele futuro desejado, arquitetado,
contado como meta, como alvo.
Como são singelas as lembranças do futuro!
A paz delineada, a saúde eterna,
as férias errantes onde se desvenda dunas,
matas, mares, desertos e ilhas.
Como são perfeitas as lembranças do futuro!
O gozo sem apego, sem restrições ou amarras.
O amor livre das lágrimas, inimigo do enfado,
da dúvida, do asco e do medo.
Como são vivas as lembranças do futuro!
O céu como limite, ou sem limite.
As fronteiras ultrapassadas, os beijos,
os abraços, as mãos, os braços.
As mil e uma despedidas, “tchaus”,
“até breves”, ou até nunca mais.
O futuro é o silêncio que grita:
“Eu não estou lá!”


A PONTE

Quando penso na vida, percebo que
não há distância para os que acreditam
na grandiosidade da natureza.
Pois o sol que toca seu corpo,
é o mesmo que me arde.
O oceano que afaga tua pele
é o mesmo que me purifica.
A lua que te enternece
é a mesma que me deslumbra.
O vento que tremula seus cabelos,
é o mesmo ar que me mantém vivo.
É o mesmo vento que toca
meu rosto e minhas asas. 
É ele quem transporta pelo espaço
o som da minha voz, que repete,
dia após dia, os mesmos versos escritos
sob o mesmo céu iluminado por infinitas
luzes prateadas e cegas.


TER OU NÃO TER

Certa feita me disseram:
“Ser, é mais importante que ter.”
Mas o que devemos ser para
prevalecer num mundo
de valores invertidos?
O que devemos ser para
não sermos?
O que não devemos ter
para sermos?
O que sou pouco importa,
pois nada tenho além de
um corpo e algumas
poucas palavras.
Ser parece pouco.
Ser ainda é pouco.
O que exigem de mim
parece algo inimaginável,
não inventado, inatingível.
Nunca sou o suficiente,
nem tenho tanto que
possa ser dividido.


TEMPORAL

Eu sou, eu sou, eu sou!
Eu era, eu era, eu era!
Eu serei, eu serei, eu serei!
Puro existencialismo.
Sou um espírito em plena
expansão, tentando a todo custo
romper os limites do corpo.
Tempo fatídico.
Dias atrás, pedra.
Grande pedra de mármore.
Nesse instante deixo de sê-la.
Transformo-me aos poucos
na mais suntuosa escultura, que,
como tudo que há, um dia
sucumbirá diante do tempo.


NA COVA COM OS LEÕES

Não sou artista de mentira,
de panfleto e sorriso fácil.
Não sou uma brincadeira,
mas brinco feito menino
diante da fragilidade
das caixas de vidro.
Não sou homem de
meias palavras,
mas de frases inteiras.
Entro na cova das feras para
me alimentar, reforçar
meus músculos.
Não sou sujeito que
mata um leão por dia.
Não há necessidade,
porque eu sou o leão.


O MÁXIMO DO MÍNIMO

Quanto tempo dura uma noite e um dia?
Talvez dure tanto quanto uma dor de ouvido,
ou quem sabe, tanto quanto um espirro.
Pode ser que dure tanto quanto um espelho,
tanto quanto dura um segredo, uma embriaguez.
Pode ser que dure tanto quanto um fruto,
uma notícia, um jogo, um elogio.
Pode ser que dure tanto quanto uma vernissage,
uma escultura de bronze, uma melodia.
Talvez dure tanto quanto dura um peso,
uma largura, uma profundidade.
Talvez dure tanto quanto uma infância,
uma amizade, uma dúvida, um riso.
Talvez dure tanto quanto um giz, um poema,
as cerdas de um pincel ou o tesão de um eunuco.
Talvez dure tanto quanto uma alforria, uma novidade,
a fome, uma unha, um sorvete, um batom.
Talvez dure tanto quanto uma fogueira, um cigarro,
um constrangimento ou uma enfermidade.
Pode ser que dure tanto quanto a memória,
tanto quanto a beleza, o destino, um orgasmo.
Pode ser que dure o tempo de um talvez,
de um sim, ou um não. Pode ser que perdure
tanto quanto perdura o silêncio que
aprisiona o mistério dos dias e das noites.

CARINHO DE BOCA

Que noite aquela,
não poderia ser qualquer uma,
cercada de sacrilégios, vinhos e frutas,
janelas abertas e copos vazios.
Todos os sentidos perdidos,
desesperados no labirinto da mente,
protegidos pelo pouco que nos restara de equilíbrio.
Os olhares entorpeceram-se de desejo,
descontrolados, percorreram toda a anatomia.
O frio na barriga previa o desfecho,
o cheiro dos corpos alastrava-se pelo ar,
a pele aquecia e os pensamentos embaralhavam-se
como cartas numa mesa de jogos.
A voracidade não seria atitude derradeira,
tampouco o beijo que terminaria na cama.
A derme alva mudava de cor a cada segundo
enquanto o sangue intumescia nossos corpos.
As luzes de néon que piscavam não faziam parte do roteiro,
mas trouxeram mais um colorido para dentro de algo.
Os corpos entrelaçavam-se,
faziam movimentos involuntários e decisivos.
Eu vi sua boca voluptuosa se abrir,
o vinho que escorria pelos cantos,
tão sacana quanto pudera:
sua cor é santa,
a boca que o bebera, nem tanto.
Na hora do gozo nada enxergávamos,
não descobrimos sequer onde estávamos.
Não vimos os travesseiros,
os lençóis, o chão, o pequenino aquário,
não vimos o maior de todos os transes, mas sentimos.
Palavras censuradas do poema
 revelaram-me faces obscenas de admirável riqueza.
Tatuo em mim a capacidade de poder enxergar o que não se toca.
Depois de tantos verbos,
os corpos quase mortos são lançados aos suspiros,
ofegância constante durante alguns minutos
de lembranças imediatas e imutáveis.
Com tantas revelações, não haveria eu de preferir
uma mesa solitária de bar, ou uma cama confortável
depois de ler algumas poesia manjadas.

SE É QUE ARDE

Hoje comi uma torta, quando acabei, pensei em mais mil pedaços,
pensei no que me conforta,
no espaço entre as coisas,
nos anti-semitas.
Recuperei um joelho abandonado no quintal,
mas perdi uma coluna inteira.
Bebi chá, água, engoli
algumas sementes de umburana.
Lembrei daquela fotografia,
pensei onde a penduraria, mas nada.
Escondi quase todos os tijolos.
Dos muros que derrubei, fiz uma casa.
As coisas mais chatas foram passear na esquina,
agora é tarde, somente tarde.
Daquela noite só me resta a trova
e o último gargalo.
Chico trouxe mais uma novidade:
a velhice pode ser chata.
Os otimistas que me perdoem,
mas também sou mais um chato.
Que grande inimiga é a similaridade!
Por sorte, minhas palavras não respeitam
quase nada,
não respeitam sequer a arte,
se é que é arte,
se é que arde.

TERCEIRA OITAVA

Eu sinto um embaraço,
então faço, faço e refaço.
Eu pego no teu braço,
costuro meus pedaços
enquanto jogam pedras
em muralhas de aço.

Apego-me a qualquer coisa,
descubro atalhos,
lona de circo sem palhaços;
sonho com maços e mais maços,
laços mal  desenhados,
o derradeiro Lácio e os
abraços confusos.

CARRETEL DE ORELHAS

O espetáculo vem aí,
o novo número será apresentado bem no meio da praça.
Enquanto isso eu conto algumas moedas.
Criei uma série de ritmos,
joguei-os pela janela
e fiquei esperando alguém ao menos tentar.
Esperei uma vez mais,
esperei bestamente alguma condução.
Cansado, olhei pela última vez a paisagem
estampada na tela.

AVENIDAS COMESTÍVEIS

Ando pelos becos procurando escândalos,
tentando abrir algum tipo de caminho.
Chuto garrafas, papéis, corpos.
Proponho outros carnavais,
outros deslizes.
Não suporto cordas,
multidões bestas.
Devoro tudo quanto é massa,
mas não sou prato fácil,
nem pretendo ser mais
um mísero prato.
Desejo ser raiz,
remédio pro estômago,
amargo, não-desejo desejado.
Sou o caco de vidro,
o arame farpado,
a seiva, a selva.
Turbilhão arruinado,
desmembrado de mim,
solto no ar,
flutuante, leve e vaporizado.
Axé!!!!!!!!!!!

AZUL

Esse mistério ninguém revela,
nem dão pista do futuro quase perfeito.
As borboletas voam entre as prateleiras,
passam perto, quase tocam com
suas asas as capas dos discos.
A última fresta é sempre um mistério,
mas nunca precisei utilizar-me dela.
O inexplorado está sempre ali,
a um único e mísero passo, uma
pequena caminhada.
Chego perto, muito perto,
mas me perco na empolgação e
com isso permito a hora “H” se afastar de mim.
O momento exato para o ataque é
quase invisível, quase imperceptível.
Os fatos parecem se encaminhar,
mas eu me confundo e jogo novamente
para o fundo do mar todo aquele tesouro.
É apenas mais um brinquedo
que deixo escapar por excesso de vontade,
por demasiado querer que, muitas e muitas vezes
me confunde e em nada me define.


BOMBA FOI

Meninos e pequenos pirilampos, todos ali.
Aqui não se vê mais fome,
nem panelas e cabos de mais nada.
Sorri para a foto como se fosse carro, ou gado.
Primazia de uma menina quente,
suburbana e desumana.
Qua-li-fi-ca-da!
Chá das cinco só às onze.
Qualquer ponteiro te convém,
menos a lâmina.
Seria sorridente se não fosse tu?
Mas que pergunta indecente!
Não cordial de uma perna seca.
Teus sapatos estão do lado de fora da chuva,
estão quase intactos, ou mortos.
Não sei mais o que dizia o ditado,
nem penso se seria quase ou tudo.
Na realidade, a manivela que vai
e não volta não é manivelada,
é fogo que não é de ontem,
nem de ontem, nem de ontem.
Seria amada se não fosse tu?
Foi no mar que as coisas aconteceram:
a luz quase tão grande quanto ela,
e quase tão azul quanto rosa.
Vai ser feliz sem moda de inferno,
ou de verão.
Não vá além do que fica além do último,
nem do primeiro, nem da casta.
Foi um fio de energia acumulada,
mancomunada.
Seria tu se não fosse tu?
Era apenas um número,
depois dois, depois três...
Socorremos todos,
não deixamos nada para amanhã,
nem ontem.
Sapo de asa não flutua,
nem estica o arrepio
no vôo da mariposa infectada. 
Cai de cima um tanto de coisa,
de baixo pra lá, outro tanto de nada,
que era um número,
depois dois, depois três...

QUEM EM MIM ME BUSCA

Não acredito em quem não tem medo,
quem se diz  super.
Não creio no intangível,
no insolúvel.
O caos me persegue, o in-sossego,
a fortuna das palavras mais duras,
as incertezas noturnas,
o incorruptível.
Gostaria de abraçar mil coisas,
de fugir de outras tantas.
Esquecer não é hábito,
é tortura não sabê-lo.
Lembrar nem sempre é privilégio.
Roubo sutilezas, escrevo dissabores,
falácias inúteis.
Não desejo as certezas toscas,
me divirto sendo um bobo,
inocente, palhaço, caça.
Não consigo ser perverso,
nem covarde, nem herói.
Sou um reflexo sem definição exata,
sem contorno, sem molde.
Não aceito ferraduras,
mas sim, desejo a sorte.

CARA CATA

Ser semente ou ser joio na mesa de pão
coberta com retalhos de dura
e seca semente perolada?
Queria que fosse o espinho,
ou a última arrelia de
quem queima em febre terçã.
Seremos os esnobes rebentos
do casulo arruinado,
seremos os cílios da sétima sala.
E o que eles expurgam
não são gotas de orvalho,
nem violinos pendentes de suor.
Seja então o que for esse remédio
procurado nas gargantas
estranguladas por nuvens passageiras,
são apenas redutos de um fim sem fim,
de uma caverna paralisada no intérprete.
A película escondeu meu fósforo
e minha pólvora dentro
de uma bacia azulada
virada ao revés do seu íntimo.
Ela não sucumbiu a nenhum pigmento
de olhos paralisantes e irradiantes.
Nervura de marimbondo,
ferradura da sorte de qualquer,
de parangolé.
Tua moeda me reprime
e me leva diante
do camundongo-barata,
e barata foi a cerca
que levava consigo
todos os grampos de ouro
e absurdos coloridos.
Até mesmo a fábula
não falou mais
do que devia seus dentes afiados,
suas garras de elefante manco
e rabo de ovelha desgarrada
que percorre as montanhas
que vão do céu ao céu do suplício.
Nem mesmo a tua boca me salva,
nem me eleva ao plano de um, ou dois.
Seria cobra? Seria mato?
No regaço figura o instante,
o descanso da lua e do norte
sossegado em pranto
e riso de um regime estridente.
Minha parede tem descanso,
mas meu mundo tem parede
e torre do tamanho do mundo,
munido de corvos e ovos.
 O doente vê a cura dentro da água,
dentro e fora daquilo que é o seu,
ou o nosso passeio pela floresta de sim.
O tempo é sempre,
então partamos ao consolo
que leva ao corte da mão
e dos pés do perigo:
tijolo arremessado
de fora pra dentro
e de dentro pra fora
do corpo e da carne,
do sangue que especula
aquilo que já é seu
e rouba o que é seu
como se fosse d’outro.


MEUS SERES DOIS

Se pararmos agora chegaremos
a algo inconseqüente
que cheira a sal e vale por quilo.
Principiantes arrependidos
rodeiam o bolo,
rodopiam com chapéus de palha
e esquivam-se do pensamento.
Se preferir a sombra é cordialidade,
então prefiro o cacto,
mas que ele seja antes de qualquer coisa.
Caminhar não é aquilo nem o enguiço,
mas o fulano e o sicrano se convencem.
A ferramenta marcada
e segurada por dedos de açoite está pendurada,
mas não serve de aborto imediato.
Quem pode, pensa,
e quem dá se desprende
no mesmo instante em que soam
os sinos do mundo perdido.
Somente os trapos perseguem o teor
dos embrulhos coloridos,
pois apenas eles podem querer
tudo o que é ferida.
O plano B não fraciona o plano A, nem o C.
Ele corrompe as expectativas iludidas
sabe-se lá por quem.
O deserto é meu ânimo e meu âmago,
minha flor e minha pedra.
Meu corte é prolixo,
vai e parece não ter fim
nem profundidade.
A casualidade me permite atingir
o alvo da esquerda,
mas dilui o meu abraço sonoro
e quente quando enfim reanimo.
Trovões me assustavam enquanto
eu estava torto,
meu corpo se desprendia do corruptivo
e me mostrava mais
uma razão de amanhã.
Os lenços amarelados
não eram verdes,
mas de uma palidez indecente.
Tudo quanto é cor me descobre
e me puxa pra cima e pra baixo.
Percorro o inimaginável.
Meus seres incógnitos e perfumados.

DOS DOIS

Tudo quanto é, encanta.
A garganta condiz teu lábio
de carne avermelhada.
O dente é espelho do ringir,
e o atingir é apenas questão de tempo.
A moça doente ainda não é velha,
e o andar da carruagem nada intensifica.
Roda ou linha?
Curva ou linha?
Círculo ou mundo?
Teu corpo não corresponde,
mas responde ao que é feito por um.
A sedução da ambigüidade vai até
o santo pasto de ervas danadinhas.
A vela não é dor, nem pecado,
mas desejo de um desejo solto no ar.
O cajado não é clave,
nem girassol plantado na direção contrária.
Nem tudo que seduz é luz,
mas é luz aquilo que é tudo,
e o que quero e o que não quero.
Dizer que o tesouro é normal
não surpreende os sentidos,
mas gora e coalha.


PACA TOLO

Seu sorriso pintado não esconde o deslize
dos vinte e oito dias do segundo.
Sua curiosa pernoite não assombra a porta aberta,
nem as janelas de barro queimado.
A praça dormia quando em ti vi o som,
e ao mesmo tempo o estrondo do não.
Somente o grito da corda que estica tua ruga,
somente o desmedido terreno de ninguém
que paira no ar meticuloso.
O sabor do que era visto não era realista
ao ponto de ser meu,
e o pesadelo se derramava em copos
de açúcar preta.
As asas que eram tuas,
seguramente as entregaram,
modificaram sua rota e distinguiram os mares.
A roda é para todos, mas o timbre, apenas poucos.
Cada monstro, na sua calma,
derrete o esquecido valente,
e o caso contente se mistura:
natureza das coisas.
Teu cabelo não rói minhas unhas
que ferem os espíritos
e, se por ventura desistir,
deitaremos apenas uma vez para nunca mais .
A excentricidade que te interroga não é minha,
nem da dona das casas vazias.
A senhora do pronunciamento arranjado e
pago com nós feitos à força.
Nem a Serpente, nem a corrente,
nem o estrago do barco é sinônimo.
Tua idade não te pertence,
nem a mim daria de conta tanta imperfeição
que assola minha mente.
Ser um só é desperdício de alma,
de colo e de útero.
Minhas algemas são suas tanto quanto suas,
ou estarei enganado pro resto do resto.
Minha tintura que arrebenta nos lagos parados
não reflete no espelho o melhor, mas o que é.
A guerra negra não compreende,
nem surpreende, nem se desprende.
Continência desejada há anos por todos os escoltados.
As cabeças não balançam mais,
e as taças que antes entornavam vinhos,
hoje se quebram de dó e desejo:
gana das entranhas virtuosas.
Meus varais estão nus,
e a gola que antes beijava meu queixo,
agora se revela a mais prodigiosa amiga.


PAR MORDISCAR

Poros e pelos de um único olho
acinzentado a bisbilhotar-me.
Soros inatingíveis, corridas irrecuperáveis
e intermináveis em busca do infinito.
Casca dura não resiste ao momento,
nem de longe parece aquilo que o levou
de um lugar ao outro do sol,
e em seguida, como num filme mal criado,
violentou o ar e o despiu
transformando-o em salobra.
No dia-a-dia o relance,
mais cansado do que a rotina de uma berlinda.
Parede brocada não canta sonho,
nem assovia para o bem passar.
Nem os córregos carregam mais gente,
nem membros.
Era como se estivesse só,
embrionado e prestes a bestificar
o sentido de pureza medonha.
Era a vez da bússola que para
algum lugar ainda persiste.
Leva daí que eu planejo de cá,
sopra daí que eu caminho.
Por pura ingenuidade
a lança caçou o tempo,
e levou dias até encontrar
seu arco desprezado
caído aos pés de um bicho.
O olho dizia as coisas mais irresistíveis,
e num único compasso,
gritou para mim aquilo que um dia
ecoara em outros campos de metal
e de “glórias” passadas.
É naquela encruzilhada que a noite é mais noite,
onde o espinho se faz bruma e leva ao caos
aquilo que o extermina. 
Nem de lá se parece, nem de cá pareceria.
Apenas a luz parece.
Priorizaram a notícia que não foi parida,
mas elevada por amigos reis
que em nada mandam.
Poderia ser qualquer coisa,
e era uma coisa qualquer que me atingia.


SUBTERFÚGIO

É muito bom poder fugir um pouco de tudo
e partir para um mundo qualquer,
um mundo imaginário só meu,
um ponto de fuga diante das possibilidades.
Nesse mundo eu dito as regras,
sou ditador de mim,
eu possuo e bebo de tudo que me dão,
consumo e depois jogo fora
num vômito colorido que
me surpreende como presente,
mas venho à tona de repente:
desse lugar, restam-me apenas lembranças,
e eu posso olhar para elas a hora que quiser.


O TEMPO E OS PONTEIROS DO RELÓGIO
“Penso, logo existo.”
Não sei se o que toco consiste.
Será mesmo que existo porque penso?
Se não penso, não há como saber que existo.
Talvez eu seja um nódulo, ou quem sabe, um cisto.


UM CANTO AO MUNDO INTEIRO

Como é bom pensar confortavelmente,
tão brutalmente satisfeito quanto um toureiro,
que rompe uma das fronteiras humanas, o medo,
e adentra na arena do desconhecido para combater seu oponente.

O que se passa na cabeça desse homem
que carrega num dos punhos um manto rubro-negro?
No outro, o sangue do touro negro
e, no peito, sentimentos que se movem.

Numa postura clássica,
tal qual poeta em mesa de botequim,
com seu copo de cachaça, conhaque, ou gim,
mostrando com doçura sua arte espantosamente plástica.

A poesia também é pincel,
a prosa também é pincel.
Cerdas que pintam o toureiro, o poeta,
o touro e sua morte quase certa.

Pinta como Picasso,
sonha como Goya, para ti.
Enlouquece a loucura, como Dali,
mostra a pena, a tinta e o espaço.

Certa noite sonhei que eu era um toureiro,
um toureiro poeta, dos sonhos, carpinteiro.
Um pintor de isqueiro, de rua,
um amante raivoso da nua.

Quem sou por fim:
o pintor, o touro, talvez o isqueiro?
Quem sabe um estaleiro!
Talvez nessa história eu seja o gim.


BANHO-ME SEM ÁGUA

Se a distância não fosse companheira,
talvez ainda desejasse a distância.
A volta para a terra dos cactos
é sempre um momento aguardado,
desejado, curtido, atordoado, cultivado...
Ir de encontro ao mundo
outrora por mim habitado,
beijar quem me criou,
quem viu meus primeiros passos.
Lá, banho-me na seca,
no véu de poeira,
na estrada de terra esturricada.
Banho-me nas fendas ardentes,
nos espinhos catingueiros,
na flor enraizada na pedra.
Banho-me nos olhos
que encontro pelo caminho,
quase sempre à procura
de água em distâncias empossada.
Banho-me no bicho da goiaba
arrancada de um pé que
talvez eu mesmo tenha plantado.
Banho-me no sol escaldante que mata gado,
planta, mata gente.
Assim sigo adiante,
banhando-me no vento,
ou quem sabe,
no silêncio da minha partida.


CULPA EU

Eu lá tenho culpa se anoiteço rima com amanheço,
se sinceridade rima com maldade,
se fé rima com mulher e não com igreja?

Eu lá tenho culpa de solidão não rimar com amor,
apesar de terem tudo a ver?
O culpado sou eu de apreço rimar com preço?

Que culpa tenho eu se rico rima com pinico,
se hipocrisia rima com tia,
me diz, que culpa tenho eu?

Que tenho de culpa se olhos rimam com atalhos,
se ponte rima com adiante,
se Deus rima com meus e não com nossos?

Que culpa devo ter por vida rimar com piada,
ou caminho com ninho,
ou graça com desgraça?
Que culpa tenho eu?


NADA MAIS

Não sou mais homem,
me transformei em lobo, raposa, carcará, pargo...
Esqueço o animal que antes era.
Sem o amor dos homens, escondo-me, porém,
ainda canto.

Vou me alimentar de raízes, frutas,
beberei somente água.
Deixarei os vícios e todos os indícios,
deixarei família e até mesmo Deus.

Olho para os outros e não os vejo,
nem o arrogante, nem o maltrapilho,
não vejo o erudito, não vejo seus veredictos,
não vejo os caluniadores nem seus fundamentos.

O firmamento? Sem o homem também não o vejo,
nem o sentido de desejar os desejos.
Felizmente não serei para sempre bicho,
só almejo suscitar o amar.

Não gostaria de voltar a ser homem,
mas algo me chama, transcende a existência,
o infinito e tudo o que lhe rodeia,
tudo o que lhe oferta.

Talvez eu almeje uma pancada mais forte
para levar-me novamente às profundezas,
arrastado por uma corrente ainda mais poderosa.
Quem sabe uma amnésia constante, eterna, abundante.

Sou só desejo, sou só.
Meus sonhos todos abertos e compartilhados,
maltratados, ignorados, alguns pisoteados
no imaginário da dor.
Dor de olhar o homem e
não enxergar nele o semelhante.


NEM TUDO FIM

O fim da noite fria,
o fim do sexo,
o fim do casamento,
o fim do dia.
O fim das compras,
o fim do sermão,
o fim da missa,
o fim da viagem.
O fim das aulas,
o fim da guerra,
o fim do filme,
o fim da eleição.
O fim da consulta,
o fim da música,
o fim do disco,
o fim do livro.
O fim da rua,
o fim da caminhada,
o fim das lágrimas,
o fim do sorriso.
O fim da bagunça,
o fim do encontro,
o fim da solidão,
o fim do trabalho.
O fim das férias,
o fim do ano,
o fim da corrida,
o fim da escada.
O fim do recado,
o fim do telefonema,
o fim do almoço,
o fim da greve.
O fim do sonho,
o fim do sono,
o fim da cirurgia,
o fim do atentado.
O fim do muro,
o fim da ida,
o fim da sorte,
 o fim da vida,
        o fim da morte.


HOJE EM DIA É DIFÍCIL SER MODERNO

As traças. Secularizo as traças,
com seus tarsos,
suas bocas sugadoras de velharias
empoeiradas em qualquer estante ou móvel da casa.

Comeram de tudo: páginas, capas,
o título inédito com letras redondas;
deslizaram sobre frases como se fossem ondas,
mas nada encontraram.

De pó em pó,
como nômades sem rumo.
Secularizo as traças,
que comeram tudo e não se alimentaram de nada.

Com suas famílias gigantescas,
exército de piolhos-sugadores,
com milhões e milhões de seguidores,
sem mapa, sem rumo, porém, indo adiante.

Bocas cansadas que não fazem mais versos
não alimentam as bocas dos insetos seculares.
Não são mais donas dos próprios pomares,
onde frutos antes, caminhos diversos.

Meu amanhã não tenho certeza se já não sei.
Não sei se remeto ao passado, num tempo remoto,
para falar aos antepassados o que hoje é escroto,
ou se vou ao futuro para alcançar o que mais tarde terei.

Será que verei lá na frente,
novamente o que hoje já se encontra ultrapassado?
Ou um salto com sombra colorida? Ou um salto alto?
Ou gente criando filhos de outra gente?

Volto a dizer:
secularizo as traças.
Se hoje, aqui, não souber o que fazer,
vou à caça das traças.
Traças carecas, barbudas,
de óculos, nas ruas,
com lunetas nos punhos
e uma voz como cunho.

Vou à caça das palavras,
relíquias orquestradas pelo amanhã,
de prateleira em prateleira
numa repetição anciã.

É mais fácil ser outro
do que ser quem se é.
Então que venha o que vier,
só não permitam morrer as traças.

Misturar as cores
às dores, às flores,
às almas e aos corpos.
Reforçar os corações dos portos.

As mãos munidas de outras garras
pularão outros tipos de muros,
rebelando-se contra o agora
sem hesitar a truculência dos enduros.

E ainda lá estarão elas,
degustando os de hoje, os de antes,
 alimentando-se, passando fome,
buscando novas aquarelas.

Secularizo as traças:
líricas, satíricas,
marginalizadas ou tempestuosas,
abocanharemos a mesma comida.


CONSELHEIROS E IDEIAS

Não levem minhas idéias aos favelados,
aos marginalizados e oprimidos.
Não levem minhas idéias aos excluídos.

Não levem minhas idéias ao submundo,
ao subproduto, nem aos desesperados.
Não levem minhas idéias aos aglomerados.

Não levem minhas idéias aos desajustados,
aos excomungados, nem aos desempregados.
Não levem minhas idéias aos sentenciados.

Não levem minhas idéias às ruas,
às marquises, não as envernize.
Não levem minhas idéias aos mendigos.

Não levem minhas idéias aos subúrbios,
aos banheiros públicos. Não as leve a lugar algum.
Não levem minhas idéias aos escravos.

Não levem minhas idéias no bolso como oferenda,
não as leve na ponta da língua.
Não levem minhas idéias, ainda,
pode ser que se arrependa.


TAMBÉM FUI AO INFERNO

Senti seu cheiro, de longe, forte.
Não sei onde piso, o que vejo e o que toco.
Não sei o que desejo.
Uma tocha nesse lugar com
tantas chamas de nada me serviria.

Não tentarei eternizá-lo como fez Rimbaud,
como fez Dante, como fez Deus.
Não conseguiria ser tão
honesto em nenhum instante.
Ainda estou em estado de choque,
ainda estou em queda livre.

Não trarei lembranças, nem fotografias,
não guardarei sequer
minha roupa chamuscada,
nem meu escudo derretido.

Não trarei recados,
nem sinais de alerta.
Não alimentarei seguidores,
não divulgarei o caminho
que o mapa revela.

Trarei sim, o sangue do demônio ainda quente,
seus cascos e sua cabeça com os olhos abertos.
 Sobre eles, os chifres,
sob eles, uma bandeja de prata.

Nenhum comentário:

Postar um comentário